‘Herança dos incêndios’: pesquisa revela impactos invisíveis das cinzas no Pantanal
Mesmo quando o fogo apaga, as cinzas seguem a contaminar as águas, solo e ar do Pantanal
| MIDIAMAX/LETHYCIA ANJOS
O Pantanal de Mato Grosso do Sul enfrentou em 2020 sua maior catástrofe ambiental, que expôs a fragilidade do bioma diante das ações humanas e mudanças climáticas. Desde então, os incêndios se tornaram uma ameaça constante que, ano após ano, consomem fragmentos preciosos da fauna e flora pantaneira.
Contudo, o impacto das chamas não se apaga com o fim do fogo. Quando os últimos focos se extinguem, o rastro de devastação permanece, perpetuado de forma lenta e silenciosa pelas cinzas, que contaminam as águas, empobrecem o solo e dificultam a regeneração de todo o ecossistema.
Em 2024, Mato Grosso do Sul enfrentou um dos piores cenários de queimadas dos últimos 22 anos, com mais de 13 mil focos de incêndio registrados. Dados da plataforma Monitor do Fogo do MapBiomas revelam que o Pantanal foi severamente afetado com 1,9 milhão de hectares destruídos pelo fogo entre janeiro a dezembro do ano passado. O número representa um aumento 64% em relação à média de área queimada nos últimos seis anos.
Essa foi a pergunta que norteou a pesquisa “Cinzas de incêndios florestais: avaliação de ameaças à reserva pantaneira do Pantanal (Mato Grosso, Brasil) por meio de testes ecotoxicológicos'. O estudo, conduzido por um grupo de pesquisadores, buscou entender o destino das cinzas quando absorvidas pelo solo, carregadas pelas águas e dispersas no ar, revelando impactos invisíveis aos olhos.
Carolina Joana da Silva, presidente do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera do Pantanal e coautora da pesquisa, explica que o grupo, formado também pelos pesquisadores Lais Soranco e Nathan Oliveira Barros, coletou cinzas em quatro Unidades de Conservação no norte do Pantanal para análises toxicológicas.
Após a coleta das cinzas, os pesquisadores realizaram testes comportamentais e de toxicidade aguda para avaliar os diferentes impactos no ecossistema. No solo, utilizaram anelídeos da espécie Eisenia andrei (uma minhoca comum) expostos a diferentes concentrações de cinzas. Na água, os experimentos envolveram a Daphnia similis Claus, 1876 (pulga d’água), conhecida por sua alta sensibilidade a alterações ambientais.
Além disso, os pesquisadores investigaram os efeitos das cinzas no fluxo de gases de efeito estufa provenientes do solo, analisando emissões de dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4).
Os resultados apontaram transformações alarmantes
No solo, as cinzas provocaram alterações químicas, como aumento de minerais e emissões de dióxido de carbono (CO2). Além disso, anelídeos (Eisenia andrei) demonstraram rejeição ao solo contaminado, com efeitos subletais que incluíram mudanças comportamentais e morfológicas.
Na água, os microcrustáceos (Daphnia similis) exibiram alta sensibilidade, com taxas elevadas de mortalidade.
Na atmosfera, observou-se um aumento nas emissões de CO2, embora as emissões de metano (CH4) não tenham apresentado alterações.
Todos os anos, registros de jacarés e onças mortos pelas chamas no Pantanal chocam a população. Contudo, os impactos vão além do que é visível. No subsolo e nos cursos d’água, espécies menos conhecidas também sofreram graves consequências.
Os anelídeos, conhecidos como vermes segmentados e representados por mais de 17 mil espécies, incluindo minhocas e sanguessugas, desempenham um papel crucial no equilíbrio ambiental. Apesar disso, são pouco lembrados quando se discute a devastação ambiental.
“Identificamos danos fisiológicos crônicos nos anelídeos. Mesmo sem mortalidade imediata, esses efeitos podem comprometer a sobrevivência a longo prazo', explica um dos pesquisadores.
Alterações morfológicas e comportamentais sugerem um comprometimento funcional, dificultando a realização de funções vitais, como locomoção, reprodução e busca por alimento.
A pesquisa também apontou uma toxicidade persistente, ligada à contaminação contínua do solo e da água por elementos químicos presentes nas cinzas. “Esses indicadores são fundamentais para prever os efeitos ecotoxicológicos acumulativos no ecossistema', destacam os cientistas.
Mas os impactos das cinzas não se limitaram ao solo, atingindo também os microcrustáceos Daphnia similis, conhecidos como pulgas d’água. Suas características biológicas os tornam particularmente vulneráveis às toxinas dissolvidas na água.
“Os Daphnia similis são mais afetados porque possuem alta permeabilidade corporal. Suas cutículas finas e a exposição direta a toxinas solúveis os tornam altamente suscetíveis. Como organismos filtradores, acumulam rapidamente poluentes presentes na água. Além disso, são sensíveis a mudanças químicas, como alterações no pH e na presença de metais pesados dissolvidos', explicam os pesquisadores.
Por outro lado, os anelídeos, organismos do solo, apresentaram maior resiliência devido às suas adaptações às condições edáficas. Ainda assim, não escaparam ilesos, sofrendo alterações comportamentais e morfológicas que comprometem suas funções essenciais.
Os comportamentos observados nos anelídeos, como a rejeição ao substrato contaminado e alterações locomotoras, refletem respostas adaptativas aos elementos tóxicos presentes no ambiente. Segundo a pesquisa, esses organismos passaram a evitar as áreas contaminadas como uma tentativa de minimizar a exposição aos poluentes.
“Alterações comportamentais e morfológicas podem ser reações imediatas para lidar com um ambiente adverso. Embora essas respostas indiquem uma tentativa de sobrevivência, podem não ser sustentáveis a longo prazo caso as condições de estresse persistam', destacam os pesquisadores.
Esse comportamento sugere que, embora os anelídeos possam tentar contornar os efeitos nocivos das cinzas, a adaptação pode não ser suficiente para garantir a sobrevivência a longo prazo.
Embora a aplicação de cinzas no solo não tenha interferido nas emissões de metano (CH4), houve um aumento significativo nas emissões de dióxido de carbono (CO2), com impactos preocupantes. Entre eles está a aceleração das mudanças climáticas.
“O CO2 é um dos principais gases de efeito estufa, contribuindo diretamente para o aquecimento global e para a intensificação de eventos climáticos extremos”, explicam.
O aumento das emissões pode indicar uma mudança na dinâmica de decomposição da matéria orgânica no solo, com maior mineralização e liberação de carbono estocado, prejudicando a capacidade do solo de atuar como reservatório de carbono.
Conforme os pesquisadores, essas alterações comprometem a disponibilidade de nutrientes no solo, desestabilizam o equilíbrio ecológico e afetam espécies que dependem de condições específicas para sobreviver.
“Esses impactos refletem como as cinzas podem alterar os equilíbrios ecológicos e a funcionalidade do ecossistema', alerta.
As cinzas deixadas pelos incêndios no Pantanal representam uma ameaça não apenas ao meio ambiente, mas também à existência de ribeirinhos e comunidades indígenas, como o povo Guató. Há mais de um século eles ocupam os territórios de Mato Grosso do Sul, mas desde 2020, os incêndios devastaram 80% da Terra Indígena Baía dos Guató, o que coloca em risco suas formas de vida, cultura e ancestralidade.
Uma das maiores preocupações é a perda dos aguapés, planta típica do Pantanal e essencial para a confecção de peças artesanais que divulgam a cultura Guató por todo o Brasil. A destruição dos aguapés pela frequência dos incêndios ameaça não só a biodiversidade local, mas também o saber ancestral transmitido de geração em geração.
“Grande parte dos incêndios são a tentativa de fazendeiros e aliados de nos expulsar do Pantanal. Muitas famílias e comunidades indígenas ainda não conseguiram romper com a situação histórica de invisibilidade étnica', afirmam líderes indígenas em nota.
Apesar da ajuda recebida em 2024, a comunidade Guató da Aldeia Barra do São Lourenço, em Corumbá, não ficou imune aos efeitos das queimadas. Crianças e idosos apresentaram problemas respiratórios devido à inalação da fumaça, e as águas da região, contaminadas pelas cinzas, se tornaram impróprias para consumo humano, ampliando os riscos à saúde.
Nesse cenário, os pesquisadores alertam para os efeitos graves dessa contaminação, que pode resultar em doenças devido à presença de elementos tóxicos, como metais pesados, e afetar a segurança alimentar.
“A degradação do solo e da água compromete a agricultura e a pesca, principais fontes de sustento das comunidades indígenas. A perda de recursos naturais, por sua vez, pode forçar o êxodo dessas populações, agravando o impacto psicológico e social, especialmente em um território que possui um valor simbólico profundo para esses povos'.
Para os pesquisadores, os resultados da pesquisa reforçam a urgência de ações para proteger o Pantanal, maior planície alagável do mundo. Entre as medidas propostas estão:
Prevenção de incêndios: Implementar políticas de monitoramento e manejo em áreas vulneráveis, reduzindo a frequência e a intensidade das queimadas.
Recuperação de áreas afetadas: Investir em projetos de remediação do solo e reintrodução de espécies locais para acelerar a regeneração natural do bioma.
Proteção da biodiversidade: Focar na preservação de espécies sensíveis, como os microcrustáceos, cuja sobrevivência é vital para o equilíbrio dos ecossistemas aquáticos.
Educação e conscientização: Sensibilizar as comunidades locais sobre os impactos das queimadas e promover práticas agrícolas e pecuárias sustentáveis.
“Os resultados podem subsidiar a legislação ambiental, regulamentando práticas agrícolas e pecuárias para evitar o uso de queimadas, além de auxiliar na criação de planos de emergência e estratégias específicas para conter e remediar os impactos em ecossistemas sensíveis', ressaltam.
Segundo eles, com dados concretos, o estudo fornece uma base sólida para decisões e iniciativas voltadas à conservação do Pantanal, garantindo a manutenção de sua funcionalidade ecológica e a sustentabilidade para as próximas gerações.